O jogo aberto do open banking

Em junho de 2020, o WhatsApp, empresa parte da big tech Facebook, anunciou que disponibilizaria um sistema de pagamento instantâneo em seu aplicativo por meio de uma parceria com a adquirente Cielo, que intermediaria os pagamentos, e com as instituições Banco do Brasil, Nubank e Sicredi, das quais o aplicativo aceitaria os cartões. 

No entanto, a iniciativa não foi para frente. O Banco Central (BC) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) barraram o serviço, pois a estrutura do chamado open banking já estava em construção e a entrada do WhatsApp Pay poderia tornar o ambiente menos competitivo. Se fosse permitido, a experiência do serviço teria o poder de influenciar o funcionamento da construção de um novo sistema financeiro.

O open banking, ou banco aberto, é uma iniciativa do BC e do Conselho Monetário Nacional (CMN) para trazer mais inovação e inclusão ao mercado financeiro. Como parte da Agenda BC#, determina que as instituições financeiras mantenham os seus dados e os de seus clientes abertos para outros participantes do mercado poderem acessá-los. Mas somente se o cliente consentir. 

O open banking permite a uma pessoa utilizar seu dinheiro no banco de diferentes formas e por meio de outros agentes, além de possibilitar o acesso a produtos de outras empresas, que utilizarão os dados como base para análise.

“Agora, qualquer instituição é um canal de acesso a outra instituição”, explica Mardilson Queiroz, consultor do BC. Por exemplo, com o open banking será possível conseguir uma linha de crédito em uma fintech que utilizará os dados bancários que, com o consentimento do cliente, estarão disponíveis para essa empresa. 

O Pix, lançado em novembro de 2020, já foi uma iniciativa dessa agenda, e você pode ler mais a respeito do novo sistema de pagamento instantâneo aqui. O open banking dá sequência a essa transformação. 

Para fazer o open banking acontecer por aqui, o BC precisou buscar referências em outros países. A iniciativa na Inglaterra, por exemplo, teve um grande alcance, incluindo serviços como operações de crédito e serviços de pagamento. Já a Austrália foi além. Lá, o open banking não atinge somente o mercado financeiro, mas também investimento imobiliário e empréstimos pessoais. “O escopo do open banking no Brasil é mais amplo do que o da Inglaterra, mas não tanto quanto o da Austrália”, explica João André Pereira, chefe do Departamento de Regulação do Sistema Financeiro do Banco Central. 

No Brasil, serão 1.065 instituições que deverão participar do open banking de maneira compulsória. São as classificadas como parte do grupo S1 (com porte a partir de 10% do PIB ou com atividade internacional relevante) e S2 (com porte entre 1% e 10% do PIB), de acordo com a segmentação do Sistema Financeiro Nacional. As demais empresas, como fintechs e bancos menores, poderão escolher se vão participar ou não. 

No Brasil, o open banking determina um padrão através das chamadas APIs, ou Interfaces de Programação de Aplicativos, pelas quais as informações deverão ser compartilhadas. As APIs são partes padronizadas de um programa ou software e podem ser utilizadas para desenvolver outros serviços. A comparação é com um plug de tomada, que pode se conectar às entradas dos diferentes serviços de empresas. 

A ideia é facilitar a troca entre as instituições de forma eficiente e sem prejuízo para a segurança dos dados. Isso já reduz os custos que as participantes teriam para buscar as informações diretamente nos bancos e fintechs. 

“É isso o que vai garantir que qualquer player agregue dados”, explica Fabrício Winter, sócio da consultoria Boanerges & Cia. Segundo ele, com as APIs, qualquer player poderá se conectar a um banco, por exemplo, em poucos meses. Basta criar sua própria tecnologia padronizada para buscar as informações e passar a ter um canal direto com a outra entidade. 

“O open banking é um processo de mudança de relacionamento entre as instituições e entre as instituições e seus clientes”, explica João André Pereira. “E tem um fundamento tecnológico.”

Vamos por fases

O processo de implementação do open banking foi prorrogado. A primeira fase estava prevista para começar a ser implementada em 30 de novembro de 2020. No entanto, devido a um pedido das instituições financeiras, o processo foi adiado para o primeiro dia de fevereiro de 2021. O motivo foi que, com os esforços para se adaptar à pandemia do novo coronavírus e cumprir prazos para o lançamento do Pix, não seria possível implementar o open banking no período esperado.

Portanto, para colocar a modalidade em prática, devido à complexidade da transformação, o BC determinou quatro fases de adequação das instituições financeiras participantes. “Estamos obrigando bancos a abrirem as portas para outras empresas”, afirma Mardilson Queiroz. “Isso exige responsabilidade na construção e no desenvolvimento do open banking.”

A primeira fase determina que as instituições financeiras comecem a divulgar informações sobre seus próprios produtos e serviços. Ou seja, nesse primeiro momento, dados de clientes não serão compartilhados, mas eles mesmos poderão utilizar essas informações para comparar as ofertas entre as participantes.

Já a segunda fase, com início em 15 de julho, começa a impactar com mais força o mercado financeiro. Os bancos terão de compartilhar alguns dados de seus clientes, sempre com consentimento prévio, como informações cadastrais e histórico financeiro. A partir da segunda fase, por exemplo, os clientes e usuários poderão receber ofertas mais adequadas de crédito de acordo com suas necessidades e realidades financeiras. 

Para João André Pereira, esse segundo momento do open banking será relevante para as pequenas e médias empresas. “Geralmente, esses agentes têm mais de uma conta bancária para conseguir negociar com as instituições”, diz ele. “Na segunda fase, eles terão uma maior oferta de serviços e mais acesso à informação para resolver suas necessidades.”

A terceira fase tem previsão para 30 de agosto e determina que as entidades compartilhem o serviço de iniciação de pagamento, outro processo conduzido pelo BC, e também o encaminhamento de proposta de operação de crédito. Isso significa que um agente terceiro, que pode ser outro banco ou fintech, poderá fazer a operação de pagamento em nome do cliente. Nesse momento, o Pix se encontra com o open banking como uma importante ferramenta de pagamento. 

Por fim, a quarta fase, em dezembro de 2021, expande o open banking para produtos e serviços de outros setores, como investimentos, seguros e operações de câmbio. 

Para Ricardo Taveira, fundador e CEO da Quanto, fintech que ajuda os participantes do open banking a compartilhar dados de seus clientes, a chegada do open banking não é diferente do movimento fundador da Bolsa de Valores.

“Isso não é um negócio do futuro, mas do passado”, brinca Ricardo. “Lá atrás as corretoras entenderam que precisavam padronizar a forma como compartilhavam informações e criaram a Bolsa de Valores; bancos e fintechs começam a sentir essa necessidade agora.”

Competição e cooperação

Uma das grandes transformações trazidas pelo open banking não será só para os clientes, mas também para as instituições: a competição. Hoje, o mercado financeiro é muito concentrado em poucos players. Segundo o Relatório de Economia Bancária do BC, divulgado em junho de 2020, 80% de todos os empréstimos e depósitos do Brasil em 2019 foram realizados em apenas cinco grandes empresas: Itaú Unibanco, Bradesco, Banco do Brasil, Santander e Caixa Econômica Federal.

Por outro lado, nos últimos anos, o Brasil teve um crescimento no número de fintechs. Se, em 2019, eram 604 empresas, em 2020, esse número chegou a 771 em agosto, segundo pesquisa do Radar Fintechlab, representando um crescimento de quase 28%. Com as fintechs também surgiram novos produtos financeiros. 

Com o open banking, além dos clientes poderem comparar com mais facilidade os diferentes serviços ofertados pelos participantes, e escolher aquele que melhor cumpre suas necessidades, os agentes também poderão introduzir diferentes produtos bancários em seus portfólios, pois terão acesso às informações das instituições para analisar tanto seus usuários quanto os serviços oferecidos pelas concorrentes. “Podemos esperar o surgimento de produtos como oferta de crédito com taxas menores, novos cartões e até contas bancárias”, explica Leo Monte, diretor de Inovação da Sinqia.

Divulgação/BCB

A Sinqia é uma empresa de tecnologia com foco no mercado financeiro que anunciou no início de 2021 o plano para investir R$ 50 milhões em startups, sendo um dos focos o processo de open banking. Atuando em quatro verticais – bancos, previdência, fundos e consórcios – com mais de 400 clientes, a Sinqia oferece soluções de software assim como serviços para ajudar empresas de todos os tamanhos a se adaptar e criar estratégias para o novo momento do mercado financeiro. 

Para Leo Monte, as fintechs têm um desafio ao longo do processo de implementação do open banking diferente do dos bancos. Por serem novas, ainda não têm uma marca consolidada como as grandes instituições. Além disso, possuem um custo alto de aquisição e, em muitos casos, dependem de investimentos de fundos para continuar crescendo. “Faz mais sentido para uma fintech se juntar a um banco grande ou médio para ofertar seu produto”, diz ele. 

E os bancos?

Enquanto as fintechs poderão criar serviços mais especializados do que os bancos, uma vez que terão em mãos os dados bancários dos clientes, as instituições mais antigas terão de fazer um movimento diferente. 

Segundo pesquisa publicada pela consultoria alemã Roland Berger, os bancos poderão perder até R$ 110 bilhões com a chegada do open banking. Para chegar ao valor, a consultoria se baseou na experiência do open banking na Europa e na Inglaterra, além das medidas do BC, para traçar possíveis cenários para os reflexos no Brasil. 

No entanto, esse prejuízo só se concretizará se as grandes instituições financeiras não transformarem seus modelos de negócio – o que não é o caso. 

Para Mardilson Queiroz, do BC, o desafio para as grandes instituições é o legado. Enquanto as fintechs são mais novas e têm mais facilidade de fazer transformações em seus modelos de negócio, um banco tradicional, ou incumbente, já possui um sistema interno construído ao longo de décadas. “Plugar uma nova tecnologia exige uma mudança de legado”, diz. 

A solução para os grandes bancos será se tornar uma plataforma de serviços – não só seus, mas também de parceiros. Os bancos, hoje, são provedores de diversos produtos, que vão desde conta-corrente até seguros, investimentos e consignados. Os portfólios dessas instituições são grandes, o que pode ser bom pela quantidade de ofertas, mas pode ser uma desvantagem quanto a profundidade e qualidade. “Não é possível ser bom em tudo”, explica Fabrício Winter. “Para um cenário competitivo, isso se torna um freio, já que o consumidor fica refém das ofertas do banco pela falta de informação.”

“Em vez de tentar vender um CDB, por exemplo, sendo que outro player possui uma solução melhor para o cliente, o banco poderá integrar a solução dessa fintech em sua própria plataforma”, exemplifica Leo Monte. 

“Hoje, o banco é o produtor e o varejista de seus serviços”, diz Ricardo Taveira, da Quanto, que faz uma analogia com um supermercado. “Com o open banking, ele terá de garantir que todos os produtos de sua prateleira sejam excelentes, mesmo não sendo seus.”

Aqui entra a experiência de usuário, que exercerá um papel essencial para atrair e reter clientes. “Os bancos terão de aprender a fazer o onboarding de usuários que não são seus clientes para tornar muito mais simples a essas pessoas os conhecerem”, diz Mardilson Queiroz. 

O Banco Original foi criado em 2011, a partir da fusão dos bancos JBS e Matone, com a proposta de ser um banco totalmente digital, ou seja, para criar uma conta, não é preciso ir até a agência para falar com o gerente. Basta reunir os documentos necessários e enviá-los digitalmente. Em 2019, o Original lançou uma das primeiras iniciativas de open banking do Brasil, antes mesmo de uma regulamentação. 

O Original foi um dos players que fez sua transformação para os novos tempos do open banking. Em 2020, criou o Original Hub, uma empresa de tecnologia que faz o chamado banking access: se integra a outras fintechs para oferecer serviços financeiros, como liquidação de boletos e análise de crédito, a partir do consentimento dos clientes. “Já nascemos com o conceito de ser um banco aberto”, afirma Raul Moreira, coordenador do comitê de inovação do Banco Original. “O desafio não é tecnológico, é comunicar o movimento adequadamente aos clientes”. 

A Quanto é um dos agentes que trabalha para facilitar as integrações desse ecossistema. Em 2018, a empresa já havia demonstrado o que Ricardo Taveira chamou de internet banking multibanco, ou seja, o acesso a um serviço financeiro por meio de diferentes canais, com o Banco Rendimento. 

“O open banking também irá alavancar as estratégias internas de cada banco, acelerando a transformação digital do mercado”, diz Carolina Sansão, gerente de Inovação e Tecnologia da Febraban. Isso porque as APIs podem ser utilizadas não só para integrar serviços entre diferentes empresas, mas também para digitalizar processos internos. 

Ação e reação

Há ainda a expectativa de o open banking promover uma maior inclusão financeira da população do Brasil. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva em 2019, cerca de 45 milhões de brasileiros não são bancarizados. Em contrapartida, o estudo “Aceleração da inclusão financeira durante a pandemia da Covid-19”, realizado pela Americas Market Intelligence com a Mastercard, aponta que o número de brasileiros desbancarizados caiu 73% em 2020 com os benefícios sociais criados durante a recente pandemia do novo coronavírus.

Uma barreira para isso é o número de brasileiros ainda sem acesso à tecnologia mobile e à internet: eram 45,9 milhões em 2018, segundo o IBGE. 

É difícil dizer quando o open banking começará a mostrar seus efeitos tanto no mercado quanto na vida de clientes e usuários. Enquanto para Ricardo Taveira, da Quanto, o open banking começará a funcionar plenamente em 18 meses, para Raul Moreira, do Banco Original, e Fabrício Winter, da consultoria Boanerges & Cia, a estimativa é de cinco anos para o Brasil ter um sistema financeiro totalmente diferente do atual. “Olhando comparativamente com outros países que já implementaram o modelo, observa-se que os efeitos são suaves e de longo prazo”, afirma Carolina Sansão, da Febraban. É esperar para comprovar.

Por Julia Fregonese

O pique do Pix

O Banco Central quer subir a barra do sistema financeiro. Como todos os players farão essa escalada é outra história

O Pix, sistema de pagamento instantâneo criado pelo Banco Central (Bacen), estreia oficialmente nesta segunda, 16 de novembro. Será uma nova opção para pessoas físicas e jurídicas transferirem e receberem valores. É a mais digital e, portanto, rápida, dentre uma lista que inclui boletos, cartões, transferência eletrônica disponível (TED) e documento de ordem de crédito (DOC). Há quem diga que, caso bem implementado, a novidade tem potencial para “aniquilar” seus pares lá na frente. Um dos porquês: transferências são feitas em até dez segundos, 24 horas por dia, nos sete dias da semana.

Além disso, as taxas do Pix são diferentes das cobradas pelas instituições em TEDs e DOCs, que podem chegar a quase R$ 20. Para pessoas físicas e empreendedores individuais (MEI), o serviço será gratuito. Desses usuários, poderão ser cobradas tarifas apenas quando receberem um pagamento por produtos e serviços, e quando a transação for feita através de um canal presencial – como nos caixas. Para outras empresas, que não pertencem ao grupo dos MEIs, haverá taxas definidas pelas instituições financeiras.

A chegada do Pix já vem sendo anunciada há algum tempo no mercado – os requisitos do programa foram anunciados no fim de 2018. A expectativa do Banco Central, a autarquia econômica federal, ao lançar uma solução de pagamentos instantâneos, é subir a régua de digitalização do sistema financeiro. E, nessa toada tecnológica, melhorar o atendimento ao usuário. No final do dia, veio para coroar um movimento pelo qual o setor já passava.

A competição entre bancos digitais como Nubank, Neon e C6 Bank, e entre soluções de pagamentos, como Stone, fez com que grandes instituições financeiras voltassem esforços para o digital, ampliando o escopo e melhorando a interface de seus atendimentos virtuais – uma força-tarefa acelerada pela pandemia do coronavírus. Mas as mudanças a que assistimos até agora foram, basicamente, “da porta para fora”. “O Pix representa mudanças da porta para dentro”, diz Alan Chusid, cofundador e CEO da Spin Pay, fintech fundada em 2019 que se apresenta como a primeira interface para pagamentos instantâneos do Brasil. De um jeito simples, a tecnologia da Spin Pay permite a quem compra online fazer pagamentos escaneando um QR Code pelo celular, que faz a conexão direta com o banco do usuário, sem necessidade de cadastro. Do lado dos vendedores, o dinheiro da transação cai na conta na hora.

Para quem vive na bolha digital, o lançamento do Pix tem um quê de obviedade. Pagamentos instantâneos são “novidades velhas” dos Estados Unidos à China. No Brasil, no entanto, ainda dão os primeiros passos. “Como qualquer nova trilha de pagamentos, a maior parte das empresas não nasce preparada para mudanças como esta, principalmente os grandes bancos, que têm um grande legado de tecnologia”, diz Fabricio Winter, sócio da consultoria Boanerges & Cia, especializada em serviços financeiros para consumidores e empresas. A iniciativa do Banco Central passa uma mensagem relevante aos players (em especial àqueles que não nasceram digitais): eu consigo, e vocês?

A corrida das chaves

O C6 Bank já tinha um produto parecido com a proposta do Pix desde agosto de 2019. É uma solução de pagamento instantâneo, o C6 Kick, que permite que clientes façam transferências por SMS – tanto para correntistas do mesmo banco quanto de outros. O serviço é gratuito.

A partir de 16 de novembro, o C6 Kick será substituído, em parte, pelo Pix. “O Kick vai servir para quando a pessoa que for receber uma transferência não tiver cadastro no Pix”, explica Maxnaun Gutierrez, head de Produtos e Pessoa Física do banco digital. Ou seja, os clientes do C6 que escolherem não utilizar o Pix ainda terão a opção de fazer transferências gratuitas por mensagem. 

Com a proximidade do lançamento do novo produto, o C6 – assim como outras instituições financeiras – entrou numa campanha para cadastrarem o maior número possível de chaves de clientes. Veio a chamada “corrida das chaves”. 

As chaves são dados utilizados pelo Pix para identificar contas dos usuários. Para pessoas físicas, há um limite de cinco chaves que podem ser cadastradas para entrar no sistema. Três delas são e-mail, número do telefone celular e CPF. Os registros podem ser feitos em qualquer empresa financeira inscrita no Bacen como operadora do Pix. 

Para Winter, da consultoria Boanerges & Cia, as instituições precisavam garantir que os clientes direcionar os pagamentos e recebimentos em suas próprias infraestruturas. Quanto mais chaves cadastradas, mais transações serão, em tese, realizadas pela empresa. Por isso, pipocaram campanhas publicitárias e notificações em aplicativos para incentivar o cadastro de pessoas no Pix. Algumas empresas chegaram até a oferecer benefícios em troca. O C6 Bank ofereceu, a quem cadastrar chaves com a empresa, o Átomos, um programa de pontos que podem ser convertidos em compras no marketplace. O Banco do Brasil lançou uma promoção: clientes que fizessem o registro poderiam concorrer a R$ 700 mil em prêmios.

Em 5 de outubro, o Banco Central divulgou quantos cadastros haviam sido feitos por instituição – uma lista que foi encarada como uma espécie de ranking pelo mercado. Na liderança, estava Nubank, com mais de oito milhões, Mercado Pago, com 4,7 milhões e PagSeguro, com 4,3 milhões. Os bancos tradicionais vinham em seguida, Bradesco (3,7 milhões), Caixa (2,5 milhões) e Banco do Brasil (2,1 milhões).

“A ‘corrida das chaves’ teve a ver, também, com o posicionamento de marca”, diz Winter. Num momento em que o setor financeiro quer se mostrar mais digital do que nunca, cadastrar chaves foi a maneira de construir reputação no Pix. A busca foi por CPFs porque, diferentemente de e-mail e número do celular, o Cadastro de Pessoa Física não muda com o tempo. 

Problemas não demoraram a aparecer: semanas depois da “corrida” começar, surgiram também as reclamações de clientes. Alguns cadastros de chaves realizados pelos três líderes (Nubank, Mercado Pago e PagSeguro) teriam sido feitos automaticamente e sem o consentimento dos donos das contas, numa manobra chamada de “sequestro de chaves”. Segundo Fabio Assolini, pesquisador sênior de segurança da Kaspersky, empresa internacional de cibersegurança, o sequestro de chaves acontece quando uma instituição utiliza os dados do cliente ou usuário para fazer um cadastro, seja por uma falha técnica, seja por má-fé.

A resolução do Banco Central que institui o arranjo de pagamentos do Pix e aprova o seu regulamento diz que, para registrar chaves, os participantes devem obter o consentimento do usuário final, através de solicitação do próprio usuário ou cliente ou por aceitação e confirmação da oferta pelo participante (Art. 57, inciso II).

Falando sobre fraudes

O objetivo de criar chaves tão simples quanto e-mail ou CPF para o programa é fazer com que o modelo alcance mais gente. Três de cada dez brasileiros têm dificuldade ou incapacidade de compreender textos simples ou fazer pequenos cálculos matemáticos, de acordo com pesquisa feita pelo Instituto Paulo Montenegro e pela Ação Educativa. O Bacen, segundo especialistas ouvidos pelo Atitude Empreendedora, queria adequar o Pix a esse cenário, de forma prática.

Mas o Brasil é o segundo país da América Latina em número de fraudes no comércio virtual, segundo um levantamento feito pela Visa. O assunto ganha outros níveis de preocupação aqui. Somos a nação com mais usuários atacados por phishing no mundo, segundo a Kaspersky. 

A fraude chegou ao Pix já durante as primeiras horas da liberação do registro, em 5 de outubro. Especialistas em segurança digital da própria Kaspersky identificaram o surgimento de 30 sites e links fraudulentos buscando cadastro para o Pix.

O phishing funciona assim: os criminosos entram em contato por e-mail, redes sociais ou SMS, apresentando-se como representantes de uma instituição. Enviam um link para uma página falsa, porém muito similar à de um banco ou empresa, e pedem para o cliente fornecer informações, desde o RG até tokens bancários. Muitas vezes, esse pedido é feito oferecendo um incentivo, a liberação de um crédito ou acesso a promoções. O sujeito que clica no tal do link tem um RAT (Remote Access Trojan, uma ferramenta que permite acesso remoto) instalado em seu computador ou celular. É assim que o fraudador extrai informações do usuário. 

Assolini, da Kaspersky, faz o alerta: “Se você quer cadastrar suas chaves, procure diretamente a página ou aplicativo do banco desejado. Cuidado com os convites de pré-cadastro recebidos, pois podem ser falsos”.

Além de fraudes para o registro, a possibilidade de haver QR Codes falsos também paira no horizonte dos desafios do Pix. Adiantando-se à história, a Inloco, empresa de segurança e performance de apps, criou o sistema Incognia Pix, que usa geolocalização para saber quais QR Codes de pagamentos estão vinculados às lojas clientes da empresa. Caso o sistema detecte qualquer QR Code diferente, o usuário não consegue acessá-lo. Segundo André Ferraz, cofundador da Inloco, a tecnologia também confirma a localização em tempo real do cliente, para verificar se ele está mesmo no estabelecimento onde a compra foi registrada. 

O sistema disponível 24 horas vai exigir equipes atentas e sistemas de segurança funcionando “nos trinques” a todo momento. Das 20h às 6h, porém, o Bacen tomou a decisão de tornar o Pix menos instantâneo. Nessa brecha de tempo, a entidade diz que a atenção será redobrada e as transferências podem levar até uma hora para serem concluídas. Casos suspeitos poderão ser colocados em espera ainda maior, até a transação ser avaliada por um funcionário, por exemplo, ou por uma segunda análise do sistema. 

Mesmo assim, Fabio Assolini afirma que as instituições financeiras devem estar preparadas para sofrer ataques virtuais todos os dias. “Os fraudadores são persistentes no Brasil”, diz. “O jeito é dificultar a vida deles para o ataque ser custoso, forçando-os a desistirem.” 

O especialista acredita que o melhor sistema antifraude é aquele que reage de forma rápida ao ocorrido. Quanto mais ágil a reação, menos fraudes ocorrerão ao longo do tempo. 

Eliminando DOCs e TEDs

O Pix tem potencial para transformar o sistema financeiro. Será a primeira grande experiência de portabilidade no setor. A expectativa é a de a tecnologia substituir produtos de pagamento já existentes no mercado, como também tornar TEDs e DOCs obsoletos. “Esses dois instrumentos ficaram incompatíveis com a velocidade do mercado hoje”, afirma Edson Costa, diretor de meios de pagamentos do Banco do Brasil. 

Isso vale, também, para boletos de curto prazo. “Nada contra o boleto bancário”, brinca Costa, explicando que essa modalidade de pagamento tem um público específico, geralmente atrelado ao e-commerce. “Mas quando você faz uma compra pela internet, tudo o que você quer é velocidade.” Na estrutura de pagamento via boletos, uma loja online que recebe um pedido precisa separar o produto no estoque e colocá-lo em espera até o pagamento ser confirmado, o que pode demorar até dois dias úteis. Com o Pix, a confirmação será mais rápida, facilitando, também, o controle das empresas sobre suas vendas. “A partir de 17 de novembro, se tudo estiver funcionando bem, não fará sentido enviar uma TED”, diz Breno Maximiano, head da unidade de Banking da Stone.

As adquirentes também passaram por mudanças. Empresas como a Stone, que antes estrelaram a chamada “guerra das maquininhas”, estão encarando o Pix como uma nova oportunidade de negócio.

Para Rodrigo Luiz Teixeira, CEO do BMG Granito, adquirente do banco BMG fundada em 2015 e que atende pequenos comerciantes, o Pix não ameaça o mercado de adquirência a curto e médio prazo. Em vez disso, há oportunidade para levar os pagamentos realizados em papel moeda para meios eletrônicos. “Com isso, temos mais fontes de informação para aprovar, por exemplo, volumes maiores de empréstimo, capital de giro e de financiamento para os estabelecimentos comerciais”, explica Teixeira. 

Segundo o executivo, o Pix apenas acrescenta mais um produto às maquininhas. Se a adquirente recebe sua receita por meio de três fontes – taxas de débito, de crédito e antecipação –, o Pix só substitui a primeira. “A taxa de débito, hoje, é a nossa menor receita e menor margem, portanto o impacto potencial que o Pix pode causar não supera 20% da receita”, diz Rodrigo. 

Segundo a resolução do Banco Central, os participantes do Pix, incluindo as adquirentes, devem oferecer uma conta transacional para os usuários, permitindo sua utilização para pagar ou receber os valores. “Com o Pix, a função da adquirente fica misturada com a função do banco”, afirma Maximiano, da Stone. Isso porque, além de credenciar estabelecimentos, processar seus pagamentos e enviar os valores para a instituição financeira, empresas de maquininha que querem ofertar o Pix também devem ser provedoras de contas. 

Para a Stone, esse novo escopo de atuação acelerou o lançamento de sua conta digital, parte de uma estratégia criada há cerca de dois anos, batizada internamente de ABC – Adquirência, Banking e Crédito. Trata-se da unificação dos serviços da Stone em uma única plataforma, lançada há pouco mais de um semestre. “A nossa dinâmica interna não foi afetada pelo Pix, ela foi confirmada”, diz Maximiano.

Muito barulho por nada?

Além dos 45 milhões de brasileiros que sequer têm conta em banco, a adesão tecnológica é mais um entrave ao novo arranjo de pagamentos do Bacen. Não é todo celular que tem a função “escanear QR Code”. “Existem mais de 200 milhões de celulares no Brasil, mas boa parte desses aparelhos é o que a gente chama de feature phone, ou seja, não chega a ser um smartphone”, diz Fabrício Winter.

O tema Pix ainda é, em grande parte, desconhecido pela população. A pesquisa “Tendências no Segmento de Pagamentos Digitais: Pix e Open Banking”, encomendada pela PayPal, aponta que apenas 15% de um total de 3.024 pessoas entrevistadas conhecem bem o Pix; 49% conhecem pouco; 28% já ouviram falar; e 8% não tem ideia do assunto. Apenas 22% dos entrevistados sabiam o que Open Banking significava.

Os negócios, no geral, ainda parecem não estar por dentro de como o Pix irá funcionar, tampouco de seus benefícios. Em entrevistas ao Atitude Empreendedora, funcionários e gerentes de pequenos negócios da região metropolitana de São Paulo não estavam totalmente inteirados com o assunto. Alguns mencionaram altas taxas cobradas para contas PJ, enquanto outros disseram querer esperar para entender qual será a reação do mercado e de outros comércios para, se fizer sentido, implementar a opção de pagamento em sua própria loja. 

A gerente da loja de artigos de cozinha Utilplast, Cristiane Barsalobre Otama, tem dúvidas sobre como o estabelecimento poderá aprovar a compra de um cliente, pois a equipe de funcionários não tem acesso à conta bancária da loja. A resposta de Winter a esse questionamento é que para o lojista, o processo será transparente. As mesmas maquininhas que, hoje, aceitam cartão de crédito e débito, passarão a receber também o pagamento instantâneo.

Já o Grupo TrendFoods, dono das marcas Gendai e China in Box, afirma que o Pix será uma solução benéfica tanto para os franqueados quanto para os clientes dos restaurantes. No entanto, ainda estuda, com bancos e adquirentes, como o produto será aplicado às franquias. “Segundo eles, muitas máquinas novas estão chegando com a tecnologia de leitura do QR Code Pagador, que tem a característica de ser uma solução com menos atrito e mais aderente à realidade do mercado”, diz o presidente Carlos Sadaki Kaidei. 

Enquanto não há uma grande adesão, tudo indica que os diferentes produtos e serviços financeiros irão coexistir por um bom tempo, boletos bancários, transferências TED e DOC, cartão de débito e até mesmo o papel moeda. “Não é o fim do mundo”, afirma Fabrício Winter, da Boanerges. “O mercado não vai estar pronto, ainda vai ter um monte de loja que não vai aceitar o Pix [ao longo dos próximos meses]. A aderência vai acontecer aos poucos.” 

O rei da experiência do usuário

Não vai ser fácil convencer usuários a trocar o que já conhecem e sabem que funciona. Mas há bons argumentos para o Pix: a isenção da cobrança nas transações para as pessoas físicas, a inclusão no e-commerce de quem não tem cartão de crédito e a praticidade de um pagamento que cai na hora, são alguns. A ideia é também que o meio de pagamentos gere informações relevantes sobre consumo para as instituições, que poderão desde oferecer produtos aos clientes com maior grau de acerto até dar crédito a quem tem o nome negativado. “Vamos entender muito melhor os hábitos de quem é excluído do sistema”, diz Winter.

“A tendência é as instituições financeiras deixarem de olhar só para o comportamento negativo da pessoa e passarem a olhar todo o resto. É algo também em desenvolvimento no nosso mercado, leva um tempo de maturação, mas muda a dinâmica de como eu ofereço o crédito dentro dessa ponta negativada.” 

Como toda nova ferramenta estreante em um mercado competitivo, o Pix foi um chacoalho para os setores bancário e financeiro. Mas é aposta de longo prazo. “O ciclo do Pix deve levar de dois a três anos para ganhar velocidade”, diz Fabrício Winter. “Os primeiros anos serão concentrados no crescimento. Quando o mercado inteiro estiver pronto para operá-lo, tanto quem paga quanto quem recebe, a curva irá subir”.

Com a eventual eliminação de TEDs e DOCs, ninguém mais vai fazer dinheiro cobrando o cliente final por transações. Ou seja, a área de “pagamentos” de instituições tradicionais vira canal para a construção de reputação e conexão com usuários – e não de receita. No final do dia, ganha quem oferecer a melhor experiência, como um todo. É uma faca de dois gumes, porque a melhora do sistema abre espaço para o open banking – lembra de quando as Telecoms viveram momento parecido, anos atrás, com a portabilidade de contas de celular? Se a mensagem passada pelo Banco Central com o Pix é a de que a régua da digitalização do setor financeiro está mais alta, o próximo passo é permitir que mudar de banco seja tão fácil quanto trocar de operadora hoje. “O open banking irá permitir que pessoas experimentem esse mundo de portabilidade, começando pelo mundo de pagamento”, diz Winter.

“O primeiro grande desafio era o Pix existir. O próximo desafio será fazer o Pix se tornar relevante. Precisa de incentivo da indústria, do varejo, e de uma experiência de jornada de usuário simples”, diz Chusid, CEO da Spin Pay.

Passada a euforia do 16 de novembro, o mercado terá panoramas mais realistas para entender como o Pix deve evoluir. 

Por Bruna Galati, Fabiana Pires e Julia Fregonese