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temporada 1 • episódio #3

Uma pioneira em Harvard

14.nov.2019

A brasileira Marcia Castro está fazendo história na Escola de Saúde Pública de uma das universidades mais renomadas do mundo. Conheça como essa carioca da Tijuca saiu da faculdade de estatística para ser a primeira mulher a chefiar seu departamento.

 

Ouça o episódio aqui

    

Marcia Castro é professora da Harvard School of Public Health e da Harvard University Center for the Environment. Nasceu no Rio de Janeiro e se formou em Estatística na UERJ. Desde 1999, estuda doenças tropicais transmitidas por vetores, como Zika, Malária, Chikungunya e Dengue. Nesta entrevista, Marcia fala sobre sua trajetória até se tornar a primeira mulher a chefiar um departamento em Harvard.

ATITUDE EMPREENDEDORA. Conte-nos sobre o início da sua vida.
MARCIA CASTRO. Eu nasci no Rio de Janeiro, minha mãe era dona de casa e meu pai é imigrante. Ele saiu de Portugal quando tinha 17 anos para servir o Exército. Não éramos ricos e morávamos em um apartamento com dois quartos, que sempre dividi com o meu irmão mais velho. Nunca tive a roupinha ou o sapatinho da moda, mas tinha o que era importante. Meu pai deu muito valor para a educação, acho que ele queria que tivéssemos uma vida melhor do que dele. Quando eu tinha 12 anos, meu pai resolveu nos matricular em um curso de inglês, porque achava que seria importante para o nosso futuro. No ensino médio, eu estudei em um colégio federal experimental técnico, que era diferente do sistema de ensino do Brasil. Muitos anos depois, descobri como aquilo foi bom para mim nos Estados Unidos, porque aqui participação em sala de aula e discussão são extremamente importantes. Além disso, o curso de estatística era reconhecido como o mais difícil, mas o que dava mais base para o vestibular, e eu precisava passar, porque não ia ter grana para pagar uma universidade privada.

Atitude. Você tinha vontade de ir para a faculdade?
MC. Sem dúvida, eu queria ir para a faculdade. Comecei a fazer esse curso técnico, fui fazer estatística, e uma das matérias que mais gostei se chamava “Estudos de Problemas Regionais”, que já era demografia, mas eu não sabia. O nome demografia nunca apareceu, e eu adorava aquela matéria.

Atitude. O que vocês aprendiam nessa matéria?
MC. Era dinâmica populacional, estrutura da população, crescimento urbano, tudo ligado à população, estrutura etária, as dificuldades que cada cidade tem em função da população, mas o nome demografia nunca apareceu. Eu fui a única aluna do curso técnico a arrumar um estágio para fazer no terceiro ano. Comecei a estagiar no Mobral, que tinha um escritório em Botafogo, porque eles precisavam de alguém que falasse inglês. Eu estudava de manhã, fazia estágio à tarde e cursinho à noite, que consegui bolsa integral. Quando chegou a época de fazer o vestibular pensei em prestar medicina, porque gostava da área de saúde, mas como gostei de estatística, prestei vestibular para essa área na UERJ, e passei. No segundo ano de faculdade, o Mobral me contratou de novo como estagiária, mas em outra área e, na metade do terceiro ano, consegui outro estágio, na Dataprev. De meados do terceiro ano até o fim do curso, eu tinha dois estágios e estudava à noite. Terminei a faculdade em dezembro, prestei um concurso para a Dataprev e passei. Comecei a trabalhar em 1987.

Atitude. O que você gostava na estatística?
MC.
Na estatística, existe o teórico, que demonstra fórmula, mas não é a minha área. O meu negócio é prático. A estatística, para mim, é uma ferramenta. Gostava da área de saúde, trabalhei um pouco com educação por causa do Mobral, mas o meu negócio era saúde. Eu descobri na estatística a ferramenta para dar vida aos dados e tentar melhorar a política. Tudo o que eu faço precisa ter uma implicação na melhoria de políticas. Nas pesquisas, como falo de vez em quando, você fica discutindo sexo dos anjos, aquele negócio não acaba. Tudo bem, cada um na sua, mas para mim precisa ter alguma implicação, uma conclusão que você use para alguma coisa. Já naquela época era isso. Na Dataprev, fazia muito estudo com previdência, sustentabilidade do sistema, envelhecimento da população, já misturava um pouco com os métodos demográficos. Pegávamos um monte de dados e tentávamos entender o que significavam e quais seriam as implicações: tem que mudar, não tem que mudar, tem que aprimorar, muda a política desse jeito, é isso que vai acontecer, faz uma simulação aqui, faz uma simulação ali. É isso o que faço com a estatística. Não desenvolvo métodos. Não é a minha praia, para mim é uma coisa aplicada.

Atitude. Você se lembra de algum caso em que seu trabalho teve um impacto prático?
MC. Quando eu estava na Dataprev, chamaram uma demógrafa para dar um curso voltado para a seguridade social, previdência social. Ela era uma ótima professora, isso também faz a diferença. Você une inspiração e bons mestres, eu me apaixonei totalmente pelo negócio. Foi a primeira vez que me dei conta que aquela matéria lá do ensino médio era demografia. Ela falou do mestrado, me indicou o mestrado no Cedeplar, na UFMG. Falou que tinha um em Campinas, mas era muito ligado à sociologia. Eu comecei a pedir referência, fiquei estudando várias coisas, aprendendo mais. Esse mestrado no Cedeplar só abria inscrição a cada dois anos. No ano seguinte não teria inscrição, mas ela me falou de um Congresso de Demografia, que também acontecia de dois em dois anos, mas ia ter no ano seguinte. E eu fiz dois trabalhos, com uma outra menina que trabalhava lá, um sobre envelhecimento e outro sobre a participação feminina no mercado de trabalho e o impacto disso na previdência social. Os trabalhos foram aceitos, e nós fomos para Recife participar desse Congresso. Foi a primeira vez que conheci a comunidade da Demografia no Brasil. No ano seguinte, apliquei para o Cedeplar e fui aceita. Lembro-me de que meu chefe na época, na Dataprev, tinha estudado Estatística em Berkeley e eu fui conversar com ele. Falei: “Eu quero fazer um mestrado, mas não queria largar o emprego, preciso trabalhar.” A bolsa da Caps era muito pequena e em outro estado. Eu fiz um acordo com ele: “Eu tenho licença-prêmio, que eu nunca tirei, tenho férias, vou concentrar as matérias em, no máximo, três dias da semana, viajo toda semana e trabalho sábado e domingo se precisar, mas eu não quero abrir mão do emprego”. Ele me deu apoio total, acho que ele entendia o valor da educação. Eu saía de BH no Cometa da meia-noite e chegava à rodoviária do Rio às 5h30. Meu pai me pegava, eu chegava em casa, tomava banho, ‘cafezão’ e ia trabalhar no Botafogo. Fiz isso durante um ano e meio. Em 1997, defendi meu mestrado e comecei a ter outra visão. Teve um ano em que quatro ministros da Previdência assumiram, e eu percebi que as decisões não eram tomadas com base nos estudos que fazia, mas com base política, e isso traz muita frustração. E aí comecei a ver tudo o que podia fazer. Então pensei em fazer doutorado, mas vi que não iria acrescentar mais conteúdo no meu aprendizado. Eu tinha mandado um trabalho para um congresso de demografia que acontece todos os anos nos Estados Unidos. O trabalho foi aceito e eu não acreditei. Era um trabalho bonitinho, mas simples, sobre o sistema previdenciário, o envelhecimento da população, a expectativa de vida, como o sistema iria se sustentar, se iria quebrar. Naquela época já estavam falando sobre isso. Essa associação dá bolsas para quem vem de países de baixa ou média renda, e eu ganhei a passagem, o hotel e uma parada adicional para visitar uma universidade. Como queria ter PhD em demografia, escolhi visitar Princeton, que sempre teve boa fama em treinamento demográfico. O voo foi para Washington e eu pedi um para Nova York, porque de lá iria para Princeton e para a Pensilvânia também. Então, eu visitei as duas. Depois da visita, resolvi aplicar para Princeton na inocência, porque, na verdade, ninguém aplica só para uma universidade aqui. Escrevi o meu statement, mas se eu ler o meu statement hoje, vou odiar, porque não sabia o que estava fazendo direito. Fui sincera, acho que isso conta. Um dia estava em casa, a minha mãe tinha aquele telefone que sai o fax atrás, tocou o telefone e começou a sair o fax, o papel acabou e eu só vi o logo de Princeton.

Atitude. Nossa!
MC. Nervoso, aquelas coisas que só acontecem quando não podem acontecer. Eu lembro que peguei o telefone, liguei e pedi para enviarem de novo. Quando chegou, eles tinham me aceito, com bolsa, seguro saúde, tudo. Porque aqui nos Estados Unidos o PhD é pago, eles dão bolsa. Era uma bolsa de quatro anos, mas renovava a cada ano com base na sua performance. Quando li aquilo, fiz as malas e fui.

Atitude.
E seus pais?
MC. Foi um choque para eles, porque não era a mesma coisa de ir para Belo Horizonte toda semana. Mas acho que, no fundo, eles entendiam que seria bom para mim, eu corri atrás para tentar conseguir aquilo, então eles só apoiaram. Foi uma choradeira danada no dia que eu fui, mas eles apoiaram. Era engraçado, porque toda vez que eu voltava, a minha mãe chorava. Eu dizia: “Mãe, chora quando eu for embora, porque se a senhora chorar quando eu chegar, vou parar de vir”. No começo, foi difícil. Quando você chega a um lugar e não conhece ninguém, tudo é novo, você tem que pegar o telefone e contratar o telefone, abrir conta no banco. Cada dia é um negócio novo, uma experiência nova, mas você cresce muito. Eu resolvi que no primeiro ano em Princeton eu não ia ter nenhum amigo brasileiro. Se é para levar a sério, é para levar a sério. Imersão total, não vou falar português, só quando voltar para o Brasil. Foi a melhor coisa que eu fiz.

Atitude. Conseguiu ficar longe dos brasileiros?
MC. Consegui.

Atitude. Mas eles não apareciam na sua frente?
MC. Não tinha tanto brasileiro estudando lá. Depois, eu descobri alguns. No meu programa, não tinha nenhum.

Atitude. Você ficou esses seis anos em Princeton estudando direto?
MC. Estudando direto. Princeton é o lugar ideal para você fazer um doutorado, porque não tem muita coisa para fazer. O legal é que está a uma hora de trem de Nova York e a uma hora de trem da Filadélfia. Então, quando precisava respirar cidade, ia para Nova York. Eu tive seis anos maravilhosos naquele lugar. Tenho lembranças incríveis. Volto todo ano, tenho grandes amigos lá até hoje. É muito engraçado como somos inocentes. Na época, não sabia nem o que era a Ivy League, que são as escolas consideradas mais nobres e mais tradicionais: Harvard, Princeton, Brown, Dartmouth, Cornell e Yale; e todo mundo diz que Stanford é a Ivy League da outra costa. Mas eu não tinha a menor ideia do que era isso. Tem família cujo sonho é o filho estudar na Ivy League. Acho que foi bom não saber, senão teria me intimidado.

Atitude. Por que essa experiência foi transformadora para você?
MC. Eu voltei a estudar a área da saúde, era o que eu queria. Mais do que nunca tive a certeza de fazer algo pela qual era totalmente apaixonada. Eu trabalho assim, movida à paixão. Se eu não estiver gostando do que faço, é melhor parar, porque não vai ser bom.

Atitude. O que você, como brasileira, trouxe para os seus colegas e os seus mentores dos Estados Unidos? Teve alguma característica sua que foi um diferencial?
MC. Eu sou muito direta, muito sincera, eu detesto perder tempo à toa. Eu geralmente acabo reunião antes da hora. Agora que virei chefe de departamento, acho que o pessoal já percebeu que as minhas reuniões sempre terminam mais cedo. Mas eu acabo atraindo muito aluno para trabalhar comigo, porque estou aqui dando aula e gosto disso. Eu gosto da pesquisa que faço, eu preciso ir a campo, eu gosto de dar aula, eu gosto de orientar. Acredito que quando você gosta, faz melhor. Você acaba com uma fila de gente na sua porta que deseja trabalhar com você, porque um fala com o outro. Isso é uma coisa. Outra coisa: eu trouxe o Brasil para a agenda daqui. Não tinha ninguém trabalhando com o Brasil. Eu já passei por muitas experiências de dizer que sou brasileira e as pessoas começarem a falar em espanhol comigo. Hoje em dia, todo ano, há teses sendo feitas sobre o Brasil. Esse curso que eu faço no Brasil, o pessoal vai em janeiro, depois, no verão, eles voltam, ficam de seis a oito semanas fazendo estágio. É difícil você ver tudo o que foi produzido no departamento, ou as palestras que tiveram no departamento, e você não vê o nome Brasil.

Atitude. E a questão de ser mulher?
MC. Isso é um problema em qualquer canto do planeta. Esse departamento foi criado em 1962, acredito. Ou seja, tem mais de 50 anos. Eu fui a primeira mulher a ser promovida a professora titular. O departamento de Global Health and Population nunca tinha promovido uma mulher. Eu fui contratada com uma outra mulher e depois contrataram algumas outras professoras mulheres. E na época em que fui contratada, os alunos estavam muito firmes, pedindo que o departamento contratasse mulheres, porque a maioria dos professores era homem e algumas alunas mulheres não estavam se sentindo muito bem com isso. Nós ficamos muito confortáveis tendo role models, eu vou ter sempre as minhas, mas acho que leva tempo para cair a ficha que você virou role model para alguém. Quando saiu o resultado no ano passado, as alunas entravam na minha sala em uma felicidade, e foi a primeira vez que eu percebi como é difícil para elas. Elas fazem doutorado, algumas com a intenção de seguir carreira acadêmica, em um departamento que nunca havia promovido uma mulher, deve ser péssimo. Foi bacana, porque quebrou essa barreira.

Atitude. Como você veio para Harvard?
MC. Quando terminei meu pós-doc de dois anos em Princeton fui contratada pela Universidade da Carolina do Sul.

Atitude. Você nunca voltou a morar no Brasil desde que saiu a primeira vez?
MC. Não. Eu estava no Departamento de Geografia, porque uso muita análise espacial, e foi outro aprendizado. No sul dos Estados Unidos é outra realidade, ainda mais em uma universidade pública, a University of South Carolina, onde a maioria dos alunos é ou muito rica e branca ou representa a primeira geração da família a frequentar a faculdade. Havia um nível muito mais misturado de capacidade intelectual dos alunos do que em Princeton, sem comparação. A desigualdade racional está na sua cara, não dá para não ver. Mas foi um aprendizado por tudo, por aprender a dar aula em uma turma totalmente diversa em tudo: elite, não elite, quero estudar, não quero estudar, sou bom na escola, não sou bom na escola. Foi muito difícil, eu aprendi muito. Foi bom ter passado por lá antes de vir para cá, pois dá outra visão. Eu jamais imaginei ficar lá muito tempo, disse que ficaria três anos no máximo, mas saí antes de completar dois anos. Abriu a vaga em Harvard, mas eu não pretendia aplicar, por ser Harvard. Eu recebi um e-mail de uma aluna que eu não conhecia, ela falou sobre a vaga e eu apliquei. Eu sei que eles entrevistaram três, aqui o sistema é totalmente diferente: você aplica, depois precisa mandar o currículo, uma carta de intenções, sua filosofia de ensino, sua filosofia de pesquisa e uma amostra de trabalhos, dois ou três trabalhos que publicou. O departamento tem um comitê, que escolhe geralmente seis nomes, dentre esses, eles chamam três que consideram os tops para vir aqui. Durante a visita, você participa de reuniões de meia hora com vários professores e de uma hora com o chefe de departamento, depois, almoça com os alunos e, em seguida, dá uma palestra sobre o tópico de sua escolha, é nessa hora que as pessoas avaliam a sua capacidade de dar aula, a sua capacidade de responder perguntas.

Atitude. É uma palestra aberta para os alunos?
MC. Aberta para todo mundo. Eles escolhem o melhor entre esses três e fazem uma oferta. Se recebe uma oferta, você volta para uma segunda visita, conversa com outras pessoas. É um processo cansativo, até porque, quando estamos no mercado, como a gente chama, aplicamos para muitos lugares e fazemos isso direto. Eles me selecionaram e eu comecei no primeiro nível, o de assistente. Aqui, desde o momento que você é contratado, você tem 12 anos para terminar o processo de ser full professor. Se depois de 12 anos você não der entrada, tchau. Entre quatro e seis anos, você aplica para virar associate e, depois, você tem 12 anos para virar full professor. Foi assim que vim parar aqui.

Atitude. Pode nos contar sobre as pesquisas que você tem feito recentemente?
MC. Eu trabalho muito com doença infecciosa, principalmente transmitida por mosquito. Grande parte da minha pesquisa é malária, e eu trabalhava na Tanzânia, mas agora a minha pesquisa é toda no Brasil. Faz sentido para mim, entendo a cultura, é minha maneira de devolver alguma coisa para o país. Sempre estudei em colégio público, o Estado me sustentou de certa maneira. Para mim faz todo o sentido focar no Brasil. Eu tenho projetos na Amazônia, com as arboviroses, Zika, dengue, Chikungunya, no Nordeste, e também com alguns colaboradores no Ceará, estamos olhando um pouco para a sífilis congênita, que a gente não deveria nem mais estar falando sobre isso, porque conhecemos a sífilis desde sempre e existe um medicamento barato e eficiente. A sífilis está aumentando não só no Brasil, nos Estados Unidos também. Estou fechando uma pesquisa agora para estimar os custos da dengue. É curioso como não fazemos muito trabalho sobre isso, para estimar o custo por caso, por pessoa, e é uma informação importante. Se você quiser fazer análise de custo de efetividade, se você quiser simular o conjunto de intervenções que pode colocar em cada área, porque cada área vai demandar uma diferente, e isso é o primeiro passo. Estamos fazendo isso para a dengue para cada estado por cinco anos. E eu quero fazer isso para a malária também, porque, por incrível que pareça, ninguém nunca calculou o custo da malária, o custo econômico da malária para o Brasil. Isso é outra linha. Tem toda essa parte de olhar para o sistema de saúde brasileiro, essa é uma demanda do momento, porque o SUS acabou de fazer 30 anos, com conquistas fantásticas, foi importantíssimo para reduzir a desigualdade de acesso à saúde, a desigualdade em mortalidade por causas evitáveis. Eu tenho trabalhado um pouco nisso, em pensar alternativas e produzir estudos que colaborem para uma agenda de discussão sobre os caminhos futuros do SUS.

Atitude. Qual é o foco do trabalho com as doenças transmitidas pelos mosquitos?
MC. Eu tento relacionar os dados administrativos do Ministério com dados do censo, com dados de imagem de satélite, com dados de outras fontes. Você relaciona, por exemplo, a base de doenças notificáveis, o Sinan, com o sistema de mortalidade para tentar entender quais são os fatores determinantes da doença em cada área, que não são os mesmos, não necessariamente. Uma vez que você entende isso, tenta desenhar políticas, ou novas ou melhores do que as atuais, para tentar combater a doença. Por exemplo, um trabalho que fiz na Tanzânia investigava o uso de larvicida para tentar combater o mosquito da malária. Foi bem-sucedido. Trabalhamos com a malária em uma área no Acre em que tem tanque de peixes. O que acontece? Anos atrás, com o apoio do Sebrae, a prefeitura começou a estimular a abertura de tanques de peixes para melhorar as condições econômicas nos domicílios. Então, você cria o peixe, vende o peixe e tem uma renda. A ideia é ótima e faz diferença para algumas famílias. O problema é que o tanque de peixe é um criadouro ótimo para o mosquito, porque a água fica paradinha ali no tanque, ela não sai do tanque. Os tanques foram abertos e, consequentemente, a malária aumentou em várias dessas áreas. Quando olhei para a configuração do tanque, pensei que poderíamos usar o larvicida ali, pois é um biológico e não mataria o peixe, apenas a larva. Contatei a pessoa com quem trabalhei na Tanzânia na época, o representante da firma do biolarvicida nos Estados Unidos. Eu fui procurá-lo e disse: “Olha, eu queria que você viesse para a Amazônia para ver esses tanques de peixe. Acho que seriam ideais para aplicar o larvicida. Que produto você tem agora, quanto tempo dura?”. Ele disse: “Temos um produto que chega a 40 dias”. Já estava melhorando. Ele foi para a Amazônia e viu a configuração. Conclusão: ele nos entregou dois produtos para fazermos um piloto. Fizemos o piloto para medir qual produto era melhor e qual concentração era melhor. Ele nos deu o produto de graça para fazermos o piloto. Nós ainda havíamos comprado a bomba errada para aplicar e ele nos deu uma bomba, que custava pelo menos mil dólares, e ele pagou pela bomba. Só conseguimos porque criou-se um vínculo de confiança. Fizemos o piloto, montamos um caso, ele apresentou na companhia e doou o produto por um ano. Em outubro foi a última aplicação, mês que vem chega o pós-doc que estava lá na Amazônia trabalhando nesse projeto e vamos analisar os dados. Na época, o Ministério estava interessado, porque ele já tem alguns convênios com essas firmas para produtos contra o Aedes Aegypti, que é o mosquito da dengue, das arboviroses. De repente, podíamos incorporar o uso de larvicida em tanques de peixe como uma das interações do Ministério. Eu não sei como vai ser esse diálogo agora, depois vem mudanças, mas a gente continua com o projeto, vai mostrar os resultados, vai oferecer para o Ministério como uma alternativa e colocar em contato com eles.

Atitude. Quais atitudes empreendedoras você teve na vida e quais você identifica nos alunos com melhor desempenho?
MC. Na minha opinião, uma coisa fundamental é ser curioso. Ler é importante, ler desperta a curiosidade. Conhecer o Brasil. Eu sempre tive essa curiosidade. Quando eu comecei a ler sobre a Amazônia, eu queria ir lá, queria conhecer mais. Essa curiosidade o leva a querer conhecer a situação, e uma vez que você conhece a situação, você quer mudar a situação. Por isso, o meu trabalho tem o objetivo de gerar alguma coisa em termos de política pública, porque eu vou lá no campo, entrevisto as pessoas, vejo como é a situação. Não dá para fazer só para publicar paper em revista bacana. Aí é melhor mudar de profissão. Você precisa querer contribuir para alguma coisa. Para quem está começando agora, essas coisas são importantes. É o pensamento crítico, é a curiosidade e é conhecer o campo, principalmente, a saúde pública.

Atitude. É uma missão?
MC. Eu acho que todo mundo tem uma. Passamos dia após dia tentando descobrir qual é nossa missão. Não sei se um dia eu vou descobrir, por enquanto, eu faço o que aparece.