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temporada 1 • episódio #4

Por uma tecnologia com menos viés

20.nov.2019

Em mais um episódio da nossa passagem por Harvard, o brasileiro Flavio Calmon fala sobre sua pesquisa na área de tecnologia. Ele compartilha suas responsabilidades como professor e conta como a cara de pau o ajudou (e continua ajudando seus alunos) a chegar mais longe.

 

Ouça o episódio aqui

    

Flávio Calmon é professor assistente da Escola de Engenharia da Universidade de Harvard. Brasileiro, cresceu em Brasília e formou-se em Engenharia de Redes de Comunicação pela Universidade de Brasília. Fez mestrado na Unicamp, doutorado no MIT e depois passou dois anos trabalhando na IBM como cientista de dados. Suas pesquisas recentes buscam entender como aplicar a tecnologia com menos viés. Nesta entrevista, ele fala sobre sua carreira, ideias sobre futuro da computação e as curiosidades de ter um irmão gêmeo.

ATITUDE EMPREENDEDORA. O que levou a estudar Engenharia de Redes de Comunicação?
FLÁVIO CALMON. Eu sempre gostei muito de matemática. Engenharia de Comunicações era uma área bem quente na época em que entrei na faculdade, havia um boom dos celulares no Brasil e me parecia interessante. Sempre fui muito curioso sobre como a informação é transmitida, como é representada e como é possível criar sistemas de comunicação. Então, foi uma escolha natural, mas não fácil. Eu também gostava de história e geografia e, até hoje, ainda tem um viés de humanas na minha pesquisa.

Atitude. Estamos vendo que você tem, na sua estante, um livro do Paulo Freire. Não sei se é comum um engenheiro ter um Paulo Freire na estante…
FC. Acho que tem uma conexão porque ele passou por Harvard. E não há muitos brasileiros professores ou pesquisadores em Harvard. E eu acredito muito nessa ideia de usar a educação como força para a transformação.

Atitude. Depois da faculdade, você seguiu carreira na engenharia?
FC. Eu me formei na UnB, o primeiro da turma. Antes, um fato interessante: eu tenho um irmão gêmeo idêntico.

Atitude. Sério?
FC. Sim e ele é professor na Insead, na França. Estudou engenharia elétrica. Fomos juntos para a Unicamp fazer mestrado. Depois, aplicamos para o doutorado fora do país; eu apliquei para programas de engenharia, ele, para programas de pesquisa operacional. E nós dois acabamos indo para o MIT.

Atitude. Sua ideia era entrar no mundo acadêmico mesmo?
FC. Não sei. Sempre gostei de fazer pesquisa. Eu adoro fazer pesquisa, adoro inovar, gosto de estar perto de aluno, de gente que está tentando fazer coisa diferente. Para mim, fazer um doutorado era uma forma de continuar trabalhando nessa direção. O engenheiro pode trabalhar em diferentes áreas, mas eu queria ter um pouco mais de liberdade e poder passar mais tempo pensando no problema de maneira profunda. Isso me motivou a fazer um doutorado. Além de poder fazer matérias um pouco mais avançadas de engenharia. No fim do doutorado, eu estava cansado de ficar provando teoremas e resolvi passar dois anos na IBM, trabalhando em coisas um pouco mais aplicadas. Lá, eu passava metade do tempo fazendo minha própria pesquisa e a outra metade trabalhando em projetos de ciência de dados com empresas. Depois, vim para Harvard dar aula na engenharia.

Atitude. Já que você citou seu irmão gêmeo, uma curiosidade: é verdade que irmãos gêmeos sentem as mesmas coisas?
FC. Não.

Atitude. Não, nunca aconteceu?
FC. Não, mas você acaba tendo uma conexão muito próxima, porque são duas pessoas da mesma idade, passando pelos mesmos eventos na vida. Meu irmão sempre foi uma inspiração para mim, sempre me motivou muito para ir além. Eu falo com ele todo dia.

Atitude. E você também é uma inspiração para ele?
FC. Espero que sim. Acho que sim. Eu gosto de ser gêmeo. Não me imagino sem ser gêmeo. Na verdade, acho que a vida do não gêmeo deve ser entediante. Porque tem um feedback muito positivo. É um sistema de realimentação positiva.

Atitude. E o que você fazia na IBM? Pode nos contar alguns dos projetos?
FC. Claro. Eu tinha uma posição de pós-doc chamada data science for social good, ou seja, ciência de dados para o bem social. Passava metade do meu tempo trabalhando em projetos que usavam a ciência de dados para, por exemplo, descobrir macacos que carregam o vírus Zika no Brasil. A outra metade do tempo era dedicada a projetos com clientes. Trabalhei, por exemplo, com criatividade computacional, que é usar a ciência de dados para desenvolver produtos novos. Parte dessa pesquisa resultou em um perfume vendido no Brasil pelo O Boticário [o nome do perfume é Egeo On]. Ajudei a desenvolver parte dos algoritmos que levaram a esse perfume.

Atitude. Como era trabalhar na IBM?
FC. Eu adorava trabalhar na IBM. Aprendi muito sobre gestão e trabalhava com uma equipe em que todos tinham doutorado. Criávamos um produto final para as empresas e os projetos eram curtos, a cada três ou seis meses passávamos para o próximo. Era um ambiente muito dinâmico e com desenvolvimento de ponta. Uma coisa é dar um toque acadêmico, outra é ter cinco minutos para convencer um vice-presidente a investir no seu projeto. Foi bem diferente da academia.

Atitude. Teve vontade de ficar?
FC. Quando comecei na IBM eu já tinha uma oferta de Harvard. Às vezes, sinto falta de estar na empresa. Ainda trabalho com as pessoas da IBM, mas, por enquanto estou mais feliz aqui na academia. É um estilo de vida bem diferente. Como professor nos Estados Unidos, eu me considero um CEO de uma non profit startup [startup sem fins lucrativos]. Agora, nós somos mais ou menos dez pessoas.

Atitude. Você é o chefe dessas dez pessoas?
FC. Sim. Fazemos pesquisas, às vezes, em colaboração com empresas, outras, pesquisa puramente acadêmica. E eu constantemente tento levantar dinheiro para pagar essas pessoas. Nos Estados Unidos, você não paga pelo doutorado, quem paga é o seu orientador por meio de bolsas de pesquisa, de projetos com o governo e com outras empresas. Isso foi uma coisa que me surpreendeu na academia americana. Sinto que passo a maior parte do meu tempo tentando levantar dinheiro para poder aumentar meu grupo de pesquisa e conseguir atingir o nível de produção que almejo.

Atitude. Como é sua rotina aqui [esta entrevista foi concedida em sua sala de trabalho no campus de Harvard]? Que horas você acorda? O que faz quando vem para cá?
FC. Eu chego ao trabalho às 9h da manhã. Marco minhas aulas para 10h30 ou 12h e, antes da aula, me preparo. Se não tiver aula, normalmente, tenho reunião com aluno. Tento fazer uma reunião de, pelo menos, uma hora com cada aluno por semana para me atualizar em relação ao projeto e ver se há algo impedindo o avanço deles. Reservo dois dias, ou um dia e meio, por semana para escrever, fazer a minha própria pesquisa, editar o que os alunos escreveram ou escrever projetos para levantar dinheiro para financiar meus alunos. Gosto muito dos meus alunos e quero que o doutorado deles seja tranquilamente financiado. Tirando isso, meu dia é uma sucessão de reuniões. Faço parte de diferentes comitês na universidade. Quando dá tempo, no fim do dia, vou para a academia e, finalmente, volto para casa e encontro minha esposa.

Atitude. Um dia bastante agitado.
FC. Tem dia que vai até a meia-noite, mas a vantagem de ser professor é a flexibilidade. Às vezes, dá para terminar um pouco mais cedo e fazer o próprio horário.

Atitude. Mas a descrição parece mesmo com a de um CEO, que passa o dia em reuniões, ajudando os outros a realizarem seus trabalhos, levantando verbas.
FC. Estou no meu terceiro ano em Harvard e tem sido um ano estranho. Até ano passado [2018], eu ainda conseguia trabalhar com meus alunos o tempo inteiro. Este ano, como o grupo cresceu, preciso ser um pouco mais gestor.

Atitude. Pode contar o que está fazendo agora, qual sua motivação para estudar isso e como sua pesquisa pode contribuir para o mundo?
FC. Antes, vou contextualizar um pouco o programa em que trabalho. Vivemos em um momento em que se escuta muito falar de inteligência artificial e machine learning. E isso está acontecendo porque, nos últimos 30, 40 anos, os engenheiros e cientistas da computação vêm desenvolvendo sistemas de comunicação e sistemas de armazenamento de dados. Todas as empresas usam banco de dados há 30 anos. Entretanto, hoje, o ritmo com que a gente coleta esses dados aumentou exponencialmente. Ao mesmo tempo, tivemos um aumento rápido da nossa capacidade computacional, também com avanços na estatística e no modelamento de dados. Isso tudo levou a este momento que vivemos agora. A minha pesquisa, fundamentalmente, estuda a teoria da informação por trás desses dados e quais são os limites de aprendizagem a partir deles. Vocês já fizeram uma regressão linear? Eu dou um monte de dados e vocês tentam colocar uma reta no meio desses dados.

Atitude. Não…
FC. Funciona assim: eu dou um monte de dados e você tenta ver qual a tendência deles. Hoje, quando se tem uma rede neural, é possível prever tendências e encontrar padrões nesses dados. Você pode fazer uma regressão, falar quantas vezes um aluno faltou a uma aula e qual nota você espera que esse aluno tire com essa relação. Agora, pense em criar um modelo que faz algo muito mais complexo, onde entra um texto em inglês e sai um texto em português. É mais ou menos isso. Hoje temos os dados e a capacidade computacional para treinar esses modelos. Eu estudo como apresentar dados para conseguir treinar esses modelos de machine learning, de inteligência artificial. Quando fazemos isso obtemos aplicações diversas e excelentes. É possível usar machine learning para criar perfumes novos ou para fazer alguma coisa como o Google Translator. Ao mesmo tempo, há vários riscos associados a isso. Há o risco de propagar vieses que existam dentro dos dados. Às vezes, são vieses de origem histórica e há questões de privacidade também. Por isso, parte da minha pesquisa está focada em estudar como a gente consegue, por exemplo, corrigir um modelo de machine learning para que ele não seja enviesado.

Atitude. Você pode dar um exemplo? O que é um modelo enviesado? Quem enviesou o modelo?
FC. O The New York Times fez uma reportagem ótima sobre isso, dizendo que a Microsoft, a IBM e outras empresas lançaram algoritmos de reconhecimento facial. Entra a imagem de uma face e sai se essa pessoa é um homem ou uma mulher, se está sorrindo ou não. Um estudo feito no MIT mostrou que vários desses algoritmos demonstravam uma performance muito pior para pessoas com pele mais escura do que para pessoas com pele mais clara. Ou seja, a taxa de erro em detectar se essa pessoa era homem ou mulher era muito maior para pessoas afrodescendentes. E por que isso aconteceu? Porque vários desses modelos são treinados usando dados reais, e eles treinaram usando dados de imagens de celebridades coletadas na internet, a maioria de pessoas brancas.

Atitude. Então, o viés do modelo reflete o viés do seu criador?
FC. Reflete o viés dos dados usados para criar um modelo, que de certa forma reflete o viés do criador. E como você detecta isso? Como corrige o modelo? Como detecta a origem desse viés de forma automatizada, simplesmente analisando os dados? Eu estudo essas coisas, e tentamos desenvolver algoritmos que funcionem em dados de alta escala que detectam esse viés.

Atitude. Fazendo uma analogia bem simples, é como se vocês fossem sentinelas que estão ali vasculhando esses bancos de dados, para ver se o banco de dados está enviesado, e falar: “Olha, pode dar esse problema aqui”.
FC. Eu nos vejo como os engenheiros que criam o cinto de segurança. Existem várias questões legais sobre se o uso do cinto de segurança deve ser obrigatório ou não, se deve ser um cinto de três pontas ou de duas pontas. Mas se você não conseguir criar o cinto de segurança, toda essa discussão será inútil. Nós estamos tentando criar esses cintos de segurança para o machine learning.

Atitude. E vocês estão fazendo testes práticos? Há aplicação em sistemas de fato?
FC. Sim, tentamos testar isso com dados reais. Eu trabalho com a IBM, por exemplo, para integrar isso a alguns sistemas que eles têm ou para testar com algum pacote que possuem.

Atitude. O resultado é otimista?
FC. É otimista. É um problema muito difícil. E acho que quanto mais usamos o machine learning em algoritmos de aplicação com consequência individual, como determinar se a pessoa vai ser presa ou não, se a pessoa vai receber um empréstimo ou não, temos que criar também essa consciência de que esses algoritmos podem discriminar.

Atitude. Na sua opinião, em que a tecnologia nunca vai substituir o ser humano?
FC. Eu acho que ainda estamos muito longe de desenvolver tecnologias que vão substituir o ser humano. Por enquanto, acredito que a pergunta mais interessante seja: onde a tecnologia poderia substituir o ser humano hoje? Eu acho que são poucos os lugares. O que vejo acontecendo nas próximas décadas é usar a tecnologia para tornar os seres humanos mais produtivos, mais eficazes. Demorou muito para criarmos um programa de xadrez que derrotasse o melhor ser humano no jogo. Contudo, décadas antes, já conseguíamos criar programas que transformavam um jogador de xadrez medíocre em uma pessoa que conseguia vencer um campeão mundial.

Atitude. Faz sentido dizer que a tecnologia vai avançar à medida que conseguirmos manipulá-la?
FC. Não vejo programas criando ferramentas que façam alguma coisa. Acho que ainda estamos um pouco longe disso. Ainda vai ter o componente humano, sim. Por isso, é importante investirmos na educação. Saber pensar estatisticamente, saber programar, saber usar dados para tornar a empresa onde você trabalha um pouco mais eficiente. Por enquanto, isso vai ser mais importante do que falar “ah, aquela pessoa vai ser substituída por um robô”.

Atitude. A aula de programação é a nova aula de inglês?
FC. Sim. Aula de inglês também é importante e não estou falando que todo mundo precisa ser engenheiro. Mas, da mesma forma que se ensina matemática na sala de aula, vamos ensinar programação e ensinar mais estatística para as pessoas poderem pensar sobre dados.

Atitude. Quais atitudes empreendedoras você acredita que foram importantes na sua vida e na vida desses alunos?
FC. Quando estava terminando meu mestrado na Unicamp, pensava em aplicar para o doutorado fora do Brasil. Meu irmão e eu juntamos dinheiro da nossa bolsa na Unicamp e viajamos para os Estados Unidos para visitar algumas universidades. Fomos. Enviei e-mail para vários professores, me apresentei e perguntei: será que você tem 15 minutos para conversar comigo sobre minha pesquisa e sobre doutorado? Vários professores não responderam. Hoje, eu entendo, todo mundo é muito ocupado. Mas alguns me atenderam e, eventualmente, deu certo. Uma das professoras que visitei era do MIT, e ela foi muito bacana comigo. Até hoje, valorizo muito isso no aluno, essa iniciativa. Os alunos que fazem isso tendem a ir um pouco mais longe. Alunos que correm atrás e se expõem; que assumem um posicionamento competitivo; que tentam fazer parte de lugares de ponta; que têm coragem de bater à porta das pessoas e ver o que acontece.