Quem é você, além do que traz no currículo?

Quando Maria Luiza Carvalho conta sobre sua experiência na última etapa no processo seletivo para entrar na Votorantim Cimentos, suas expressões não parecem de alguém que conversa sobre trabalho. Ela fala sorrindo e arregala os olhos ao reconstituir a cena. No dia, não sabia o que esperar. Aquela era a quarta vez que chegava à final da seleção de uma grande empresa – nas outras três não tinha passado. Atribuía a reprovação ao seu sotaque de João Pessoa, na Paraíba. “Em todos os processos eu me senti um pouco envergonhada, com medo, porque só via gente de São Paulo competindo comigo”, afirma. Quando escutou que havia sido aprovada não conteve as lágrimas e, antes que pudesse se sentir constrangida por isso, se surpreendeu ao ver que os dois gestores à sua frente também estavam chorando. Diziam estar felizes pela entrada dela na empresa. Afinal, não se tratava de apenas uma escolha fora dos padrões. Era um indicador do início de uma mudança de paradigma no ambiente corporativo brasileiro.

Cenas como essa começam a fazer parte de processos seletivos de grandes empresas como Braskem, PepsiCo, Cargill, Votorantim Cimentos e Danone – todas ouvidas para esta reportagem. A principal mudança é não filtrar os candidatos nos programas de trainee e estágio pelo nome da faculdade ou idade, antes pré-requisitos básicos para avançar nas entrevistas de emprego, nem gênero ou etnia, que indiretamente poderiam influenciar o entrevistador. O novo formato é chamado internamente de processo seletivo às cegas.

Trata-se de um movimento iniciado no Brasil há cerca de 5 anos, segundo especialistas de recrutamento. Seu principal motivador é a percepção de empresários e executivos em relação ao perfil do jovens. Diversas pesquisas recentes indicam que, ao buscar emprego, os jovens são atraídos não apenas por salários altos, mas também pelo propósito da empresa – palavra que se tornou corriqueira em discursos corporativos – e pelo significado que a própria pessoa atribui ao trabalho. A nova abordagem nas seleções é, portanto, uma tentativa de ir ao encontro das aspirações das novas gerações. Ao entenderem que precisavam transformar os critérios de escolha, os recrutadores enfrentaram alguns dilemas. Como diversificar o time se existe o viés confirmatório inconsciente, a tendência automática que temos de buscar informações que confirmam nossas impressões iniciais e podem nos levar a decisões injustas? 

Ligia Leonor de Oliveira, gerente de projetos de RH do Grupo Companhia de Talentos, afirma que o primeiro passo das empresas deve ser entender que é necessário trazer a equidade (o que não significa igualdade) para o recrutamento. A diferença entre as duas palavras está no fato de que equidade leva em conta o ponto de partida de cada um, adaptando regras para cada caso específico, na tentativa de garantir justiça. “Algumas empresas podem afirmar que estão fazendo um processo de seleção às cegas, mas mantêm testes convencionais, como o de lógica e o de inglês, para determinar a aprovação ou não de um candidato para a próxima fase”, diz a headhunter e fundadora do blog Carreira Orgânica, Maria Eduarda Silveira. Ao fazer isso, as organizações oferecem igualdade de oportunidades, mas não necessariamente equidade, uma vez que nem todos os concorrentes têm a mesma bagagem educacional.

Um estudo da consultoria estratégia global McKinsey & Company confirma que empresas que adotam a diversidade relatam níveis muito mais altos de inovação e colaboração. Por exemplo, há uma probabilidade 152% maior de os funcionários relatarem que podem propor novas ideias e tentar novas formas de fazer as coisas. Está confirmado que empresas com times diversificados geram bons resultados, mas é necessário que esses novos candidatos, além da diversidade e de suas características únicas, sejam alinhados com a cultura da empresa. 

O que todas as empresas entrevistadas pelo Atitude Empreendedora têm em comum é que estão mudando o processo de trainee ou estágio e não exigem mais que sejam revelados o nome da faculdade e a idade dos candidatos. A Danone dispensa o domínio do inglês, enquanto a Braskem aceita que 40% das vagas sejam preenchidas por quem não fala o idioma. Para a Danone e a Votorantim Cimentos, o curso do candidato na faculdade não é relevante. O que buscam é principalmente aderência ao perfil cultural das empresas. 

Teste na realidade

Na Votorantim Cimentos, uma das oito maiores empresas de materiais de construção do mundo, o ponto de partida para a mudança foi a constatação de que o perfil dos funcionários e candidatos seguia um padrão: a maioria era homem, com uma ideia média de 27 anos e cursando ou formado em Engenharia, o que criava no mercado a imagem de uma empresa masculina e tradicional. A liderança da organização queria atrair profissionais com perfis diversos. Para isso, o primeiro passo foi transformar o processo de trainee. Em vez de buscar currículos, os recrutadores tinham de captar a essência do candidato por meio de suas histórias de vida e o potencial de desenvolvimento que eles teriam dentro da empresa. “Não queríamos ser encarados como mais um processo seleção como qualquer outro. Quem se reconhecesse na cultura da empresa, teria que fazer um esforço adicional para mostrar isso”, afirma Aldo Frachia, gerente de Diversidade e Atração. “Queríamos que o candidato se conectasse com ele mesmo e com a Votorantim Cimentos, ao longo da seleção”.

A etapa presencial da Votorantim Cimentos

Para “captar a essência” do candidato, a proposta é que, na primeira etapa do processo, eles façam um vídeo de até 2 minutos sobre os últimos 7 anos de sua vida. Cada um será avaliado não só pelo conteúdo, mas também pelas entrelinhas. Por exemplo, pelo quanto se revela orgulhoso de sua trajetória. 

Na etapa presencial de 2018, além da conversa, foi incluída uma experiência prática para ajudar os avaliadores a identificarem os comportamentos dos candidatos. Os jovens participaram da construção de casas populares em uma comunidade de São Paulo, por meio de uma parceria da Votorantim com a Moradigna, um negócio social que viabiliza reformas residenciais a um preço mais baixo que a média do mercado. No ano seguinte, a empresa promoveu uma dinâmica em parceria com o Pimp my Carroça, movimento que atua para dar visibilidade aos catadores de materiais recicláveis. O principal objetivo foi avaliar como os candidatos trabalhavam em grupo. Da perspectiva da trainee Maria Luiza Carvalho, aquela que se emocionou ao ser aprovada no processo, a vivência foi impactante. “Entendemos como era de fato a realidade árdua dessas pessoas. Saí dali diferente do que entrei. Fui crescendo ao longo do processo”, conta.

A missão escrita no site da Danone é “levar saúde por meio da alimentação ao maior número de pessoas possível”. A companhia tem consumidores das mais variadas idades e culturas, mas essa diversidade não se refletia no quadro de funcionários da empresa. Em busca de perfis variados de pessoas, a liderança também aderiu ao seleção às cegas. Eliminaram o inglês e o teste de lógica para focar na aderência cultural. Nas entrevistas, buscam candidatos que tenham como propósito pessoal ajudar a saúde do planeta e das pessoas. 

Em uma das etapas iniciais, o candidato faz um vídeo apresentando alguma ideia inovadora para o mercado. É o momento em que ele pode mostrar sua criatividade a partir de um briefing. Seguem para a próxima fase aqueles que demonstram estar alinhados ao propósito da companhia. Na sua vez, Natália Beatriz da Silva, hoje estagiária da Danone, foi orientada a simular a abertura de uma startup voltada para marketing de relacionamento e desenvolvimento de sites. Sua ideia, então, foi aproximar a empresa do seu consumidor final através de um portal para adultos e crianças. Na parte adulta, os visitantes podiam trocar dicas de uma alimentação mais saudável, compartilhando experiências e receitas que incluíssem os produtos da Danone; e na parte infantil, o foco eram jogos educativos e ensinamentos sobre reciclagem. 

Durante a pandemia, a Danone adotou o processo seletivo 100% digital. Os gestores começam cada etapa com uma dinâmica descontraída para quebrar o gelo. A turma de Natália, por exemplo, teve que criar uma história. O primeiro candidato começava a história com um produto da Danone e os demais iam completando. O que menos importava era a história em si (que ficou sem pé nem cabeça), mas a brincadeira fez com que todos relaxassem. Quando recebeu a emocionante notícia de que foi aprovada, Natália sentiu como um resgate do gostinho bom da infância. “Trabalhar na Danone é como ter uma memória afetiva por ser um lugar que fez parte da minha infância toda. Sentir que contribuo um pouco para que cada produto chegue no mercado e faça parte de novas histórias de vida é especial”, diz.

Estagiárias da Danone

Sai a lógica, entram as sutilezas

Na Braskem, maior produtora de resinas termoplásticas nas Américas, o que disparou a mudança no processo seletivo dos estagiários foi a pressão interna da equipe de RH sobre a liderança da companhia. Desde 2014, o time reivindicava mais diversidade e inclusão, o que deu origem a um departamento dedicado aos temas e ao propósito interno de ser uma empresa mais humana e capaz de melhorar a vida de seus funcionários. Na ocasião, foi conduzido um treinamento para integrantes e líderes tornarem a comunicação e o ambiente mais inclusivos e diversos. Em 2019, o principal desafio seria eliminar a necessidade de os candidatos ao estágio cursarem uma faculdade de primeira linha. “Não é verdade que as melhores faculdades formam as melhores pessoas. Há bons profissionais e boas pessoas em todas as universidades. Muitas vezes, as que mais precisam de uma oportunidade em estágio não tiveram como fazer uma boa faculdade”, diz Fernanda Tognolli, analista de Pessoas & Organização da Braskem.

Uma das etapas do novo processo da Braskem é o game 100% personalizado, que conta a história da empresa. Conforme o candidato vai passando pelas etapas, têm seus comportamentos e personalidade sutilmente avaliados, por meio de decisões que tem que tomar. A todo momento se depara com dilemas como: “Posso tomar uma decisão sozinho e diminuir o tempo da minha atividade, ou posso conversar com o meu time e construir uma ideia coletiva, mas vou demorar mais. Qual eu escolho?”. Enquanto isso, a liderança da empresa avalia o processo de aprendizado do candidato. Como ele analisa fatos e dados e, a partir disso, com que velocidade tom sua decisão. O que ele mais valoriza e para o que atribui mais peso. 

O resultado da seleção às cegas surpreendeu os gestores. “Ouvimos vários depoimentos do tipo: ‘Poxa, quem diria que pessoas que não estudaram numa faculdade de primeira linha iriam tão bem aqui’. As coisas estão ganhando forma e estamos conseguindo evoluir cada vez mais”, comemora Fernanda. Algumas mudanças culturais, decorrentes da transformação dos últimos seis anos, são visíveis na empresa. Por exemplo, as pessoas costumavam ser muito formais no dia a dia e tinham que seguir um dress code determinado. Hoje, os colaboradores são mais livres para escolherem as roupas que quiserem usar. 

Sem padrão, com qualidade

“Imagine que a PepsiCo te deu U$S 100 mil para explorar a próxima grande tendência no segmento de alimentos e bebidas, qual seria a sua proposta de negócio disruptiva e como você a levaria para o mercado atual?”, essa é a pergunta que a empresa faz no seu desafio Dare To Do More (“Ouse fazer mais”, em português), lançado em 2019. Com mais de 1.200 recém-formados e universitários inscritos no primeiro ano do desafio, a liderança da empresa entendeu o potencial dos talentos que apareciam e decidiu torná-lo uma etapa do seu processo de trainee. Em 2020, os vencedores, além de apresentarem o seu projeto para a diretoria global, formarão o próximo grupo de trainees da companhia. 

Com essa dinâmica, o propósito é promover desenvolvimento pessoal, experiências de aprendizado, estimular a criatividade e o senso de responsabilidade em cada candidato, ao mesmo tempo trazendo diversidade para dentro da empresa. Na edição passada, o resultado do processo de trainee foi 53% de representatividade racial e 70% de representatividade feminina. 

Na Cargill, empresa global de serviços e produtos alimentícios, agrícolas, financeiros e industriais, o último processo seletivo de estágio, que também foi às cegas, recrutou 40,1% de mulheres e teve um aumento de 3 vezes mais estudantes de faculdades com classificação inferior a cinco ou quatro estrelas, segundo avaliação do MEC. As principais mudanças no programa foram eliminar o gênero, a idade, a etnia e o nome da faculdade do candidato. “A Cargill está empenhada em criar e manter um ambiente de trabalho inclusivo e diverso, onde todos os funcionários são tratados com dignidade e respeito e possam aprender, desenvolver-se e contribuir para o sucesso da empresa”, diz Luciana Giuranno, head de aquisição de talentos da Cargill. 

Se os processos às cegas gerarem os resultados esperados, no futuro eles não serão mais necessários. Sua consequência natural será a garantia de times naturalmente mais representativos.

Por Bruna Galati

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